A modernidade tem como filho primogênito o fenômeno da
urbanização e esta, por sua vez, pode ser exemplarmente representada pela
cidade de São Paulo – mais especificamente pelo Centro da capital paulista.
O centro de São
Paulo é um paradoxo (de) concreto. O antigo e o moderno: prédios e construções
que fazem você se sentir em um filme de época, até ouvir alguém gritar: "Olha o
DVD, três por dez!". A liberdade e a corrupção: greves, manifestações e todos
os tipos de tentativas de mudança em algum setor social ocorrem ali, aos olhos
dos senhores engravatados que assistem inertes lá de cima do prédio da
Prefeitura a miséria de um povo tão rico. A arte e o entulho: crianças cantando
sertanejo universitário, hippies tocando flauta, deficientes desenhando em
azulejos, mendigos tocando Bob Marley e o moço que imita o Michael Jackson
dançando Thriller: tudo isso em meio a uma concentração absurda de embalagens,
poeira e tudo mais que denominamos lixo.
Milhares de pessoas e carros – indo e vindo –, alguns
moradores de rua dormindo, taxistas esperando, policiais conversando,
vendedores gritando entre as ruas sujas e ao mesmo tempo lindas que compõem o
famoso centro velho, "ao cheiro" de lixo somado ao cheiro da pressa – que é
tanta que se torna impossível não senti-la exalando de toda e qualquer pessoa
que por ali passa.
Foi nesse cenário catastrófico, contraditório,
paradoxal e bonito (porque ainda há beleza no caos) que o artista britânico
Antony Gormley decidiu espalhar estátuas de corpos humanos em tamanho natural
feitas de ferro fundido – cujo molde é o corpo do próprio artista. As estátuas
estão distribuídas pelas ruas e prédios do Centro, onde permanecem presas por
cabos de aço no topo das construções.
Além das 31 estátuas, o artista também expõe no Centro Cultura Banco do Brasil instalações, modelos, maquetes, gravuras, fotografias e vídeos da mostra "Corpos presentes".
Se a pretensão do artista plástico
era tornar os corpos de fato presentes, chamando atenção das pessoas que por
eles passam, funcionou. Eu trabalho no Centro e da janela da minha sala é
possível ver duas das estátuas de Antony e é possível também verificar a reação
das pessoas ao se depararem com elas: algumas, mais descontraídas, tiram fotos
e brincam; outras, mais tímidas, apenas olham desconfiadas.
As estátuas que ficam no topo dos
prédios são um show à parte. Eu mesma, a primeira vez que vi essa cena da minha
janela, achei que estava prestes a assistir a um suicídio.
Mas porque será
que isso nos choca tanto? Não vivemos nós, também, na beira de um precipício, com
pressa, com medo, com dúvida?
Tão preocupados em nos equilibrar em cima dessa linha
estreita e flexível que configura a relação de espaço e tempo a que estamos
submetidos, não ouvimos os sons que a cidade grita, não enxergamos a beleza dos
paradoxos que a cidade apresenta, não reparamos nos rostos que vem ao nosso
encontro: corremos para chegar logo em casa e então poder reclamar da solidão.
Quando Antony coloca um homem de
ferro na beira de um abismo para tentar chamar a atenção de outro homem de ferro a
beira de um abismo talvez ele esteja pedindo apenas uma coisa: pare. Repare. A
arte está na rua, e não apenas quando artistas decidem expor suas obras ali. A
arte está na rua quando alguém decide parar para vê-la: a própria rua, a própria
arte.